segunda-feira, 23 de junho de 2014

                                                   RATIO STUDIORUM
FRANCA S.J., Leonel. O método pedagógico dos jesuítas: o "Ratio Studiorum": Introdução e Tradução.Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1952.       Leonel Franca (1893-1948), sacerdote da Companhia de Jesus, doutor em Teologia, escritor laureado com o prêmio Machado de Assis da ABL, dentre as suas obras, legou-nos O método pedagógico dos jesuítas, publicado postumamente, mediante a chancela IMPRIMI POTEST. A primeira parte do livro contempla 95 páginas e denomina-se Introdução.     O autor a inicia, discorrendo sobre as razões que originaram a fundação de colégios, a partir de 1548, e sua rápida proliferação em várias regiões da Europa, pois Inácio de Loyola, ao fundar a Companhia de Jesus, intentava peregrinar pelo mundo, para realizar a tarefa da evangelização, segundo as missões ordenadas pelo Papa. Os jesuítas, caracterizados como soldados de Cristo, deveriam cultivar os exercícios espirituais, com muita meditação e silêncio. No entanto, o primeiro colégio tem suas raízes plantadas em residências, inicialmente denominadas colégios, destinadas ao acolhimento de jovens estudantes inteligentes, potenciais candidatos jesuítas, os quais freqüentavam universidades públicas, e posteriormente as aulas passaram a ser ministradas na própria residência, originando-se, dessa forma, o Colégio Messina, fundado em 1548. Em face do ingresso cada vez mais significativo de alunos externos e da falta de experiência dos professores, fez-se sentir a necessidade de uma normatização do trabalho em colégios, o que exigiu a codificação do Plano de Estudos da Companhia de Jesus - o Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu -, redigido por comissões de destacados jesuítas, sob a direção do Geral da Ordem, P. Acquaviva, submetido a várias análises e alterações, até adquirir forma definitiva e obrigatoriedade em 1599, após 15 anos de minuciosos estudos. O cerne do ordenamento era garantir a uniformidade de procedimentos, de mente e coração dos educadores jesuítas e dos alunos, para a consecução dos objetivos propostos, opondo-se à turbulência desencadeada pelo movimento reformista do século XVI. O autor, em seqüência, explicita que, o Ratio Studiorum, como se denomina abreviadamente, permaneceu por quase dois séculos, até a supressão da ordem, em 1773, quando o Papa Clemente XIV proibiu a Companhia de Jesus de atuar em seus colégios. Posteriormente, o Papa Pio VII, em 1814, restaurou a ordem, tendo o superior-geral nomeado uma comissão para elaborar uma revisão no Ratio Studiorum, cujas análises foram concluídas em 1832, apresentando-se uma nova versão, com 29 conjuntos de normas, exatamente um a menos que a versão de 1599. À medida que vai detalhando o longo processo do Ratio, Leonel Franca paralelamente faz a apologia da fidelidade aos princípios pedagógicos gerais do Plano de Estudos que devem continuar norteando os colégios dirigidos por jesuítas. Nesse aspecto, é essencial vislumbrar o momento em que a obra foi produzida por Franca: a década de 1940. Percebe-se que o autor procura evidenciar o seu apreço pelo sistema de ensino jesuítico, flexibilizando-o às circunstâncias de tempo e espaço, assegurando-lhe uma majestosa soberania na história da pedagogia. Como fontes do Ratio, emerge no texto a incontestável influência em Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, dos estudos vivenciados na Universidade de Paris, emoldurados pelo humanismo do Renascimento e pela restauração tomista, podendo-se inferir ter lá buscado as bases para seu método de ensino. Para construir a sinopse do Ratio, o autor alerta sobre a finalidade eminentemente prática bem como as origens históricas geradoras desse manual que preceitua métodos de ensino, regras e diretrizes objetivas aos envolvidos no processo educativo jesuítico. Prossegue Franca o estudo, elencando as dimensões sob os títulos: administração; currículo e metodologia; e os elementos mais importantes de seu conteúdo. Apresenta a administração dividida em Províncias ou Circunscrições territoriais supervisionadas por um Provincial, abrangendo casas e colégios da Ordem. Integram a hierarquia os Reitores de Colégios, os Prefeitos de estudos auxiliados pelos Prefeitos de disciplina, com atribuições especificamente delineadas. Cumpre ressaltar que a hierarquia organizacional reflete a estrutura piramidal da Igreja. Especifica o autor serem os estudos organizados em três modalidades de currículos: o Teológico, em quatro anos, abrangendo a Teologia escolástica e moral, a Sagrada Escritura, Direito Canônico e História Eclesiástica; o Filosófico, em três anos, baseando-se nas doutrinas de Aristóteles e Santo Tomás; e o Humanista, com duração de seis ou sete anos, abrangendo cinco classes, com cinco horas diárias de aula: Retórica, Humanidades, Gramática Superior, Média e Inferior. O Ratio Studiorum preceitua a formação intelectual clássica estreitamente vinculada à formação moral embasada nas virtudes evangélicas, nos bons costumes e hábitos saudáveis, explicitando detalhadamente as modalidades curriculares; o processo de admissão, acompanhamento do progresso e a promoção dos alunos; métodos de ensino e de aprendizagem; condutas e posturas respeitosas dos professores e alunos; os textos indicados a estudo; a variedade dos exercícios e atividades escolares; a freqüência e seriedade dos exercícios religiosos; a hierarquia organizacional; as subordinações... Exigia-se a elaboração de composições escritas com aprimorado rigor; liam-se autores greco-romanos, em especial Aristóteles, Cícero, e a retórica propunha formar o perfeito orador. Percebe-se que o sistema de ensino deveria eleger autores e pensadores vinculados ao pensamento oficial da Igreja, razão pela qual emerge vigorosamente a figura de Tomás de Aquino. A formação religiosa configurava-se como o maior pilar do sistema educativo jesuítico. Cuidava-se para que a fidelidade doutrinária fosse mantida, irrestritamente, evitando-se quaisquer textos, autores, questões polêmicas ou debates em discordância com a doutrina da Igreja, para que nada expusesse a fé e a piedade dos alunos. O apuradíssimo estudo do latim privilegiava leituras de autores clássicos, manejo das normas gramaticais e auxiliava no domínio das línguas pátrias, que, gradativamente, iam se inserindo no currículo. Integralizavam os trabalhos em aula exercícios complementares, teatro, discursos, declamações, academias, pregações no refeitório, premiações..., trilhando o ensino a dimensão humanístico-tradicional, em que a inteligência considerada produto da criação divina deveria desenvolver-se pelos ditames da Fé. Para reforçar e provar a excelência desse Saber que formava as elites culturais e lideranças hegemônicas, o autor cita escritores, pensadores, enfim, expoentes notáveis dos mais variados ramos da ciência que absorveram os conhecimentos na metodologia jesuítica: Cervantes, Vieira, Bernardes, Montesquieu, Voltaire, Moliére, Descartes, Galileu, Bossuet, Fontenelle, Berthollet, Gregório de Matos, Cláudio M. da Costa, Alvarenga Peixoto, Caldas Barbosa etc., etc. O autor reitera a admiração pela Ratio transcrevendo palavras de Paulsen, autor protestante, de respeitável autoridade: "Que o Ratio Studiorum tenha sido elaborado com grande sabedoria e diligência invulgar é o que não se pode pôr em dúvida. Nem tampouco é possível contestar que, no seu conjunto, o seu plano de estudos se adapta bem às exigências do tempo; tudo o que tinha um valor no mundo científico do século XVI foi nele levado em consideração. Não duvido tampouco, que pela organização escolar, a Ordem tenha promovido eficazmente a difusão da cultura intelectual, e, em particular, o conhecimento das línguas clássicas nos países católicos, onde os jesuítas eram os mestres mais instruídos e mais zelosos" (Franca, 1952, p. 55-56). Parece que o autor, ao transcrever esse juízo, objetivou demonstrar que, embora o Plano de Estudo da Companhia de Jesus visasse insurgir-se contra a Reforma pregada pelo protestantismo, teve a eficácia acatada por um protestante de reconhecida autoridade, que se curvou ao sistema organizado daquele ensino de vertente católica. Leonel Franca expõe, com muita ênfase, aspectos relevantes da pedagogia jesuítica: a preleção, em que se aborda um texto etimológica, gramatical, literária e historicamente; estudos privativos e grupais com exercícios escritos, pesquisas, heterocorreções; a emulação, arma de incentivo nos certames, debates, desafios, disputas, exposição de trabalhos, premiações, estimulando a entrada em Academias;1 a memorização, repetindo-se os pontos mais fortes das lições, praticando-se declamações e representações teatrais; a rígida formação moral e religiosa, com exortações em público ou em particular, vigilância contínua, concentração e perseverança nos estudos, domínio e controle das emoções, firmeza de caráter, sobriedade, obediência irrestrita aos superiores, práticas sacramentais freqüentes, aulas específicas de aprofundamento da doutrina católica. Embora não se preceituassem castigos corporais, os jesuítas não os suprimiram de todo. Permitiam-se, desde que houvesse justificativa, chicote ou palmatória, os golpes não ultrapassando a seis, evitando-se atingir o rosto ou a cabeça. "No dia solene da investidura, como símbolo da sua missão disciplinadora, recebia oficialmente o professor um chicote. E não o recebia em vão. Pierre Tempête, Principal do Colégio de Montaigu, mereceu a triste alcunha de Grand fouetteur des enfants" (Franca,1952, p. 60). Ainda na Introdução, o autor dedica 19 páginas ao valor permanente do Ratio, declarando que "educar não é formar um homem abstrato intemporal, é preparar um homem concreto para viver no cenário deste mundo" (Franca, 1952, p. 76). Para tanto, reitera ser a pedagogia jesuítica ativa, com aulas plenas de vida, e iluminada por um grande ideal de formação integral humanista, com professores muito bem preparados, em todas as dimensões da perfeição humana, verdadeiros apóstolos, modelos de virtudes. A escolha dos professores era submetida a rígidos critérios de seleção para que fossem eficientes no progresso intelectual, moral e espiritual dos alunos. Não poderia ser outro o perfil do mestre inserido na Companhia de Jesus, pois o termo Companhia sugeria um pelotão de soldados da Igreja de Cristo, responsáveis pela luta contra a Reforma protestante, a qual comprometia a hegemonia do catolicismo. Por não acatarem os protestantes a revelação subordinada à autoridade divina e infalível do Papa e da Igreja, e por pregarem o livre exame na interpretação da bíblia, sem interferência das autoridades eclesiásticas, somente professores com formação esmeradíssima poderiam enfrentar o combate, com armas espirituais. Para bem entender como deveriam ser os agentes do ensino jesuítico, cumpre lembrar que Inácio de Loyola, por ter sido oficial antes de ser sacerdote, imprimiu caráter militar à Ordem, e para revigorar a ascese desses soldados de Cristo a serviço do Papa e da Igreja, faziam-se obrigatórios os Exercícios Espirituais e Estudos Teológicos em profundidade. O autor encerra a parte introdutória apresentando farta bibliografia, como fronteira à segunda parte, intitulada: Organização e Plano de Estudos da Companhia de Jesus, que compreende 110 páginas de regras, traduzidas da própria Ratio, detalhando o agir de cada integrante do processo educativo, seqüencialmente: Regras do Provincial, do Reitor, do Prefeito dos Estudos, Comuns a todos os Professores das Faculdades Superiores, do Professor de Sagrada Escritura, do Professor de Língua Hebraica, do Professor de Teologia (Escolástica), do Professor de Casos de Consciência (de Teologia Moral), do Professor de Filosofia, do Professor de Filosofia Moral, do Professor de Matemática, do Prefeito de Estudos Inferiores (ginasiais), Normas da Prova Escrita, Normas para a distribuição de prêmios, Regras comuns aos Professores das classes inferiores, do Professor de Retórica, do Professor de Humanidades, do Professor da Classe Superior de Gramática, do Professor da Classe Média de Gramática, do Professor da Classe Inferior de Gramática, dos Escolásticos da Nossa Companhia, Diretivas para os que repetem privadamente a Teologia em dois anos, Regras do Ajudante do Professor ou Bedel, dos Alunos Externos da Companhia, da Academia, Regras do Prefeito da Academia, do da Academia dos Teólogos e Filósofos, do Prefeito da Academia dos Teólogos e Filósofos, da Academia dos Retóricos e Humanistas, da Academia dos Gramáticos. A título ilustrativo, segue-se a regra n. 20 (Franca, 1952, p. 148), a qual denotava o zelo com que o professor das faculdades superiores deveria tratar o aluno: "Zeloso do adiantamento dos alunos tanto nas lições como nos outros exercícios escolares; não se mostre mais familiar com um aluno do que com outros; não despreze ninguém; vele igualmente pelos estudos dos pobres e dos ricos; procure em particular o progresso de cada um de seus estudantes." Essa segunda parte do texto é densa de normatizações, autêntico código cogente e coercitivo, redigido com estilo claro, propiciando entendimento integral e leitura fluida. Segue-se como fecho do livro um índice onomástico. À guisa de conclusão, indubitavelmente, as diretrizes emanadas do Ratio Studiorum exerceram e até hoje exercem grande influência na pedagogia de educadores religiosos católicos de outras congregações, as quais absorveram as regras e princípios do jesuitismo, pondo-os em prática em suas instituições, com maior ou menor intensidade. A leitura desta obra permite refletir na importância do Ratio Studiorum para a Igreja Católica intimidada diante da Reforma Protestante à qual aderiram muitas nações que já estavam se adaptando à nova ordem social capitalista. Entendem-se as razões pelas quais Portugal elegeu a Companhia de Jesus para o monopólio da educação e de ensino tradicional na Metrópole e nas colônias, reinando de certa forma absoluta, até mesmo após a sua expulsão, pela Reforma Pombalina. A todos os que se propõem estudar a História da Educação esta obra de Franca é imprescindível, tanto para uma leitura crítica da parte introdutória, para se inferir como os padrões educativos do Ratio privilegiavam a classe dominante, e para conhecer na íntegra o ordenamento do Plano de Estudos Jesuíticos, seus princípios basilares, sua historicidade a subsidiar pesquisas, iluminar investigações, estabelecer análises comparativas com outras tendências pedagógicas. Por muitas vezes, durante a leitura do Ratio, senti-me provocada pelo autor, em face da dimensão persuasiva subjacente. Não se pode negar a capacidade discursiva de Leonel Franca ao considerar o Ratio Studiorum um Plano de Estudos de vigorosa magnitude, alinhavada à sua formação jesuítica. Ao longo do texto introdutório, em especial, o autor demonstrou o papel preponderante da Companhia de Jesus como instituição de vanguarda no processo de ensino tradicional, assegurando a hegemonia da influência religiosa na educação instrucional. Quanto ao ordenamento normativo em si mesmo, na segunda parte do livro, incontestavelmente, representa uma alavanca que impulsiona discussões sobre a história da Educação, mediante seus decretos educativos, abrindo pistas até mesmo para mais claramente vislumbrarem-se as estratégias da Igreja Católica no fortalecimento do poder do Papa, dos dogmas, do clero, dos concílios, enfim, da própria Igreja, tudo isso ligado à Inquisição. Embora o autor seja jesuíta, sua obra O Método Pedagógico dos Jesuítas configura-se como o primeiro sistema organizado de ensino católico, uma contribuição de inestimável importância, de mérito indiscutível no que tange ao estudo dos princípios educacionais da Companhia de Jesus, responsáveis pelo ensino não só no Brasil mas em várias regiões do mundo, cujas linhas pedagógicas ficaram incorporadas como parâmetro nas mentes dos educadores, não sendo de todo superadas, independente do pensamento laico sobre educação e das muitas reformas que se lhe sucederam. Cumpre assinalar, transpondo os limites da obra de Leonel Franca, que os jesuítas, através dos tempos, até a contemporaneidade, têm buscado manter o prestígio educacional, mediante atualizações de seu sistema pedagógico de ensino, em especial, mediante a 31ª Congregação Geral, fundamentada no Concílio Ecumênico Vaticano II, que inaugurara uma nova fase na história da Igreja. "Nesse contexto, a assembleia dos jesuítas reafirmava a importância de se prosseguir o apostolado educativo em instituições escolares, um dos principais trabalhos da Ordem, não obstante certas vozes internas discordantes, admitindo que ele poderia ser exercido de outras maneiras. Seguindo a finalidade primordial da pedagogia jesuítica, ' virtude e letras' ou ' fé e ciência', o trabalho educativo visa fazer dos cristãos homens cultos e comprometidos com o apostolado moderno e propiciar aos não-cristãos, por meio de uma formação humana integral, a orientação para o bem comum e o conhecimento e o amor de Deus ou, pelo menos, dos valores morais e religiosos" (CGXXXI, d. 28, n. 7).2 Notas
1 "Sob o nome de Academia entendemos uma união de estudantes (distinctos pelo talento e pela piedade), escolhidos entre todos os alunos, que, sob a presidência de um membro da Companhia, se congregam para entregar-se a certos exercícios relacionados com os assuntos" (Regras da Academia, n. 1. Franca, 1952, p. 221).
2
Klein, Luís Fernando, SJ. Atualidade da pedagogia Jesuítica. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 47.         [ Links ]

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